sábado, 7 de abril de 2007

Feriados religiosos no Brasil

Na Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 explicita-se «a dignidade da pessoa humana» como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º e inc. III) e, como um dos «objetivos fundamentais» da República, «promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação» (art. 3º e inc. IV). Também assegura-se: «todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza» (art. 5º); «é inviolável a liberdade de consciência e de crença» (art. 5º, inc. VI); «ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa» (art. 5º, inc. VIII). No título da organização do estado, capítulo da organização político-administrativa, proíbe-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios «estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança» e «criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si» (art. 19 e incs. I e III).
Por isso, qualquer observador mais atento fica espantado com a quantidade de feriados religiosos existentes no Brasil. E, como se não bastasse, há quem queira mais. Em 27 de março de 2007 a Comissão de Educação do Senado aprovou em caráter terminativo (não necessita ser votado pelo Plenário e deve ir direto para a Câmara) o Projeto de Lei do Senado 55, de 2007, de autoria do Senador Francisco Dornelles (PP-RJ), que institui o Dia de Santo Antônio de Sant’Anna Galvão, e estabelece como feriado nacional o dia 11 de maio de 2007, o mesmo dia em que o papa Bento 16 vai transformar em santo o frei Galvão, primeiro brasileiro a ser canonizado pelo Vaticano.
O Senador Valdir Raupp (PMDB-RO) também apresentou o
Projeto de Lei do Senado 157, de 2006, que altera a Lei 662, de 6 de abril de 1949, para incluir a terça-feira de Carnaval, a sexta-feira da Paixão e a quinta-feira de Corpus Christi entre os feriados nacionais. Justifica o projeto dizendo que, embora sejam das mais populares e tradicionais datas comemorativas e religiosas do País, a terça-feira de Carnaval, a sexta-feira da Paixão e a quinta-feira de Corpus Christi, não estão incluídas entre os feriados nacionais estipulados por lei, no caso a Lei 662, de 1949, com a redação dada pela Lei 10.607, de 19 de dezembro de 2002, para incluir entre os feriados nacionais os dias 21 de abril e 2 de novembro. A Lei 6.802, de 30 de junho de 1980, declara feriado nacional o dia 12 de outubro «para culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil». A Lei 9.093, de 12 de setembro de 1995, expressa que são feriados civis «os declarados em lei federal» (art. 1º e inc. I), e que «são feriados religiosos os dias de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não superior a quatro, neste incluída a Sexta-Feira da Paixão» (art. 2º).
Como se vê, o fato é que, além do Natal e do ano novo, que são feriados antigos, há também o «Dia da Padroeira do Brasil», que passou a integrar o calendário oficial por iniciativa do gal. Figueiredo, em plena ditadura militar. O Natal celebra o nascimento de Jesus Cristo. O «ano novo» também celebra o nascimento de Jesus Cristo, mas ainda poderia ser comemorado como «feriado civil», porque, oficialmente, é o «Dia da Confraternização Universal».
Todos esses feriados de notório cunho religioso são decorrentes de leis anteriores à promulgação, e não teriam sido recepcionados pela atual Constituição Federal. E não se deve falar em «tradição», como se isso legitimasse a existência de tais feriados, pois quando a Constituição Federal trata do Estado laico, obviamente se considera que a religião é algo que faz parte das «tradições» de um povo. O legislador constituinte abriu mão expressamente dessa espécie de «tradição», justamente em favor da liberdade, da igualdade e da proibição de desproporcionalidades ou preferências no que diz respeito às religiões – e isso independe daquilo que a «maioria cristã» considera «tradicional». Afinal, para um «não cristão», ainda que às vezes somente na esfera de sua família ou de sua comunidade, a «tradição» é outra, mas ele é obrigado a seguir um calendário oficial que se pauta pelas «tradições cristãs». Dessa forma a inclusão de datas religiosas no «calendário oficial» de nosso País padece de grave vício de inconstitucionalidade.
Mas qual é o caminho para que esses feriados religiosos sejam excluídos do ordenamento jurídico? As leis em questão são anteriores à promulgação da Constituição de 1988. Assim, talvez um bom meio seja a argüição de descumprimento de preceito fundamental, a ser ajuizada no Supremo Tribunal Federal por um dos legitimados. Está sendo descumprido pelo menos um dos fundamentos do Estado brasileiro, a dignidade da pessoa humana, assim como um dos objetivos fundamentais, que é o de promover o bem de todos, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação. Descumprem-se os princípios da igualdade e da proibição genérica de «distinção de qualquer natureza», assim como o da inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença e o da proibição de privação de direitos por motivo de crença religiosa, já que, havendo um feriado religioso, privam-se de direitos de quem não professa essa religião. Também se descumpre o preceito fundamental que proíbe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a criação de distinções entre brasileiros ou preferências entre si (art. 19 e incs. I e III). É evidente que há criação de distinção entre brasileiros que professam a fé contemplada no feriado e os brasileiros que não a professam.
Outro caminho, pelos mesmos fundamentos, pode ser a ação direta de inconstitucionalidade, já que, como se viu, a Lei 9.093, de 1995, estabelece a possibilidade de lei municipal criar feriados religiosos em número não superior a quatro (art. 2º) e a Lei 10.607, de 2002, com o argumento de incluir feriados, repristinou os efeitos da Lei 662, de 1949, que não teria sido recepcionada pela Constituição. Por isso, ambas essas leis são passíveis de serem questionadas por ação direta de inconstitucionalidade, assim como as que estão tramitando no Senado, quando virarem lei, já que, embora mereçam, dificilmente serão vetadas.
Pedro Oto de Quadros (http://otodf.blogspot.com/), utilizando-se também de informações de Gravatai Merengue (http://imprensamarrom.com.br/?p=585)