sábado, 20 de setembro de 2008

Crimes sem castigo

São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Crimes sem castigo

FÁBIO KONDER COMPARATO

A facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado é dos aspectos menos louváveis do caráter nacional

Em homenagem a todos os que tiveram suas vidas ceifadas e suas almas dilaceradas pelo poder militar

UM DOS aspectos menos louváveis do caráter nacional é a leviana facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado. Desde o inicio da colonização e até hoje, múltiplas etnias indígenas foram vítimas de genocídio e de desculturação forçada. Durante quase quatro séculos, a escravatura legal de africanos e afrodescendentes destruiu e aviltou milhões de seres humanos, deformando os nossos costumes e a nossa mentalidade. Em relação a ambos esses crimes coletivos, as gerações atuais não se sentem minimamente interessadas. Pior: é geral a ignorância a esse respeito, sobretudo entre os jovens, provocada pela intencional omissão de tais fatos históricos nos currículos escolares.

Reproduzimos agora, com relação aos horrores do regime militar, a mesma atitude vergonhosa de virar as costas ao passado: 'não tenho nada a ver com isso'; 'não quero saber, pois não havia nascido'; 'vamos nos ocupar do futuro do país, não de fatos pretéritos'.

Pois bem, sustento e sustentarei, até o último sopro de vida, que interpretar a lei nº 6.683, de 28/8/1979, como tendo produzido a anistia dos agentes públicos que, entre outros abusos, mataram, torturaram e violentaram sexualmente presos políticos é juridicamente inepto, moralmente escandaloso e politicamente subversivo.

Sob o aspecto técnico-jurídico, a citada lei não estendeu a anistia criminal aos carrascos do regime militar. Só há conexão entre crimes políticos e crimes comuns quando a lei expressamente o declara, como sucedeu com a Lei de Anistia promulgada por Getúlio Vargas em abril de 1945, em preparação ao fim do Estado Novo. Mas, mesmo quando a lei o declara, a conexão criminal supõe que o autor ou os autores de tais crimes perseguiram o mesmo objetivo e não estavam em situação de confronto. Admitir a conexão entre crimes cometidos com objetivos totalmente adversos é um despropósito. Isso sem falar na violação flagrante, no caso, de preceitos consagrados internacionalmente em matéria de direitos humanos e que não comportam anistia.

Sob o aspecto moral, impedir oficialmente que sejam apuradas e reveladas ao público práticas infames e aviltantes de abuso de autoridade é inculcar, para todos os efeitos, a vantagem final da injustiça sobre a decência; ou seja, afirmar que a imoralidade compensa. Falar, a respeito da citada lei, em reconciliação nacional é um cínico abuso de linguagem. Moralmente, só pode haver reconciliação quando pactuada entre as partes envolvidas no litígio e perfeitamente cientes dos fatos ocorridos. O que não ocorreu no caso: uma das partes, justamente o conjunto das vítimas das atrocidades cometidas, não foi chamada a dizer se aceitava ou não essa forma de apaziguamento, nem foi informada sobre a identidade dos executores e de seus mandantes.

Politicamente, admitir que agentes do Estado, que exerciam funções oficiais e eram remunerados com recursos públicos, isto é, dinheiro do povo, possam gozar de imunidade penal por meio de simples lei, votada sem consulta prévia nem referendo popular, representa clamoroso atentado contra o princípio republicano e democrático. O Congresso Nacional, ao assim proceder, usurpou a soberania popular e subordinou o bem comum do povo ('res publica') ao interesse particular de um punhado de facínoras e de seus comanditários, dentro e fora do governo.

Qual a solução? É pedir à mais alta corte de Justiça do país que julgue, definitivamente, se a Lei de Anistia deve ou não ser interpretada à luz dos princípios fundamentais que esteiam todo o nosso sistema jurídico. Nesse sentido, é confortador saber que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil já decidiu propor, no Supremo Tribunal Federal, uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no tocante à interpretação desviante da Justiça e da decência dada por certos setores à lei nº 6.683, de 1979.

FÁBIO KONDER COMPARATO, 71, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de 'Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno' (Companhia das Letras).

sábado, 13 de setembro de 2008

A inconstitucionalidade de pensões e outros benefícios para ex-governantes

No final do ano de 2006, a Assembléia Legislativa do Estado do Mato Grosso do Sul aprovou lei concedendo pensão a ex-governadores. Recentemente, o Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Souza, enviou ao Supremo Tribunal Federal parecer favorável ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, formulado pelo Partido Democrático Trabalhista, de dispositivo da Constituição do Estado do Ceará que confere a ex-governadores e ex-vice-governadores, que tenham exercido cargo de governador em caráter permanente e por período igual ou superior a seis meses, subsídio mensal e vitalício, a título de representação, igual ao percebido pelo governador do Estado.

No Distrito Federal, a Lei distrital 2.723, de 11 de junho de 2001, que também estabelecia que «o Governador do Distrito Federal, terminado seu mandato, tem direito a utilizar os serviços de quatro servidores para atividades de segurança e apoio pessoal, bem como um veículo oficial de serviço, com motorista, durante o período de dois mandatos subseqüentes ao seu», restou questionada pelo Procurador-Geral de Justiça do MPDFT por inconstitucionalidade com a Lei Orgânica do Distrito Federal e com a Constituição Federal. Na lei mencionada permitia-se a utilização de servidores públicos para fins estritamente particulares, uma vez que, autorizava expressamente a atuação de servidores em atividades estranhas ao serviço público, além de autorizar o uso indevido de veículo oficial, com motorista, para atividades de natureza privada. Em 23 de agosto de 2005 o TJDFT declarou a inconstitucionalidade da norma. O Distrito Federal apresentou recurso sob o principal argumento utilizado em alguns votos divergentes, no sentido de que no âmbito federal existe a Lei 7.474, de 8 de maio de 1986 (com nova redação dada pela Lei 8.889, de 21 de junho de 1994), que concede o mesmo benefício a ex-presidentes da República. A bem da verdade, a Lei 7.474, de 1986, não foi recepcionada pela Constituição de 1988 e, o que fez a Lei 8.889, de 1994, foi, unicamente, de forma disfarçada, repristinar os efeitos dela.

Tanto os benefícios de pensão, como os então existentes no Distrito Federal, e o que ainda existe para os ex-presidentes da república, encontram-se em flagrante descompasso com os princípios republicano e da moralidade administrativa, da impessoalidade, da razoabilidade, do interesse público, da eficiência, expressos na Constituição Federal, na medida em que permitem o dispêndio de recursos públicos para finalidades privadas, configurando privilégio inadmissível e flagrantemente incompatível com as normas constitucionais pátrias.

A concessão de privilégios como esses a ex-governadores já foi, inclusive, julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quando suspendeu emenda à Constituição estadual que instituía subsídio mensal e vitalício a ex-governadores do estado do Amapá, ressaltando a inexistência de parâmetro no âmbito federal a ser seguido pelos estados-membros, além da imposição de despesas que gravavam as finanças do Estado.

Nos casos de cessão de servidores públicos e concessão de veículos oficiais a ex-governantes, com maior razão há que entenderem-se inconstitucionais as normas pertinentes, dada a natureza dos privilégios conferidos. A designação de servidores públicos para atuarem em atividades estranhas ao serviço público, na esfera particular de pessoas sem qualquer vínculo com o ente federativo, ganha contornos de maior gravidade, na medida em que viola frontalmente o princípio da moralidade administrativa, a que devem obediência todos os entes da federação.
A atuação do servidor público pressupõe que seja perante um órgão público ou entidade a este vinculada, nas dependências deste e sob a subordinação e supervisão de outro servidor público hierarquicamente superior. De igual forma, a utilização de recursos materiais da repartição para fins particulares é expressamente proibida. É o que se depreende da leitura de dispositivos da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, aplicável no âmbito do Distrito Federal, a partir de 1º de janeiro de 1992, por força da Lei distrital 197, de 4 de dezembro de 1991 (art. 5º), que elenca as vedações impostas aos servidores públicos, entre as quais: ausentar-se do serviço durante o expediente, sem prévia autorização do chefe imediato; retirar, sem prévia anuência da autoridade competente, qualquer documento ou objeto da repartição; utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares; cometer a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de emergência e transitórias; e exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho (art. 117 e incs. I, II, XVI, XVII e XVIII).

Normas como a Lei distrital 2.723, de 2001, não observam a natureza da função dos servidores públicos e a destinação obrigatória dos recursos materiais das repartições estatais. Dessa forma, mediante lei, comete-se o descalabro de se legitimar ato que enseja sanção administrativa a servidores públicos (Lei 8.112, de 1990, arts. 129, 130 e 132).

O mais absurdo e inaceitável, porém, é verificar que leis desse jaez instituem privilégio a particulares, mediante permissão para a utilização do trabalho de servidores públicos e de recursos materiais da administração, o que configura ato de improbidade administrativa previsto na Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, segundo a qual, constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades públicas, e notadamente, utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer entidade pública, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades (art. 9º, inc. IV).

A criação de uma equipe particular de trabalho e de segurança, composta por servidores públicos ocupantes de cargos públicos, destinada a auxiliar ex-governantes em suas atividades de natureza privada, demonstra de forma inequívoca a burla aos princípios constitucionais, privilegiando-se pessoas que não mais possuem qualquer vínculo com o serviço público.
É necessário compreender o sentido do regime republicano. O cidadão que se julga capaz de conduzir os destinos da entidade federativa e é eleito, se dispõe a tal tarefa pelo elevado espírito republico. Dessa forma, a perpetuação de direitos que dizem respeito ao exercício do cargo constitui verdadeiro contra-senso. Ao deixar o cargo, as prerrogativas de que dispunha já não são mais necessárias. É da essência de República que tal cidadão volte a ser um cidadão comum. Não serve o argumento de que, em razão de ter exercido o mandato está exposto a riscos maiores que os demais concidadãos que não exercem cargos políticos.

Dessa forma, espera-se que o Procurador-Geral da República adote medidas para questionar a validade da Lei 8.889, de 1994, que, de forma velada, repristina os efeitos da Lei 7.474, de 1986, não recepcionada pela Constituição republicana de 1988.

Texto escrito em janeiro de 2007, antes de o STF declarar a inconstitucionalidade da lei do Mato Grosso do Sul mencionada no início.

Manifesto por melhor distribuição da Justiça Criminal

Caro Rogério e colegas,

De fato, o desabafo foi perfeito.
Tocou nas feridas jurídicas e extrajurídicas do nosso sistema judicial.
O STJ, tribunal que deveria propiciar estabilidade e segurança jurídica nas decisões judiciais, prestou um enorme desserviço ao país.

Essa decisão demonstra de modo inequívoco:

1) O quanto são volúveis e fugazes nossos ministros, tendo em vista a radical mudança de orientação do dia para a noite.
2) O quanto é importante ter advogados "influentes" (o que não se confunde com competência).
3) Quanta diferença há quanto um dos "no$$os" (ou "deles") está sentado no banco dos réu$$$$$$$.
4) Alguns julgadores vivem num mundo próprio e desconhecem o que se passa fora do seu quintal (Ministros Backyardigans).

A leitura é longa, mas vale cada linha.

Por fim, segue a precisa observação do Min. Joaquim Barbosa:

"Eu acho que há uma tremenda confusão conceitual no Brasil sobre o que é ser liberal ou conservador em matéria penal. Repito uma pergunta que me foi feita por juiz da Corte Constitucional da Alemanha: 'Em um país que não tem tradição de punir as suas elites, pode ser considerada liberal a postura garantista?' Eu entendo que não, acho que ela é extremamente conservadora. O garantismo é importante. Mas sua exacerbação num país como o Brasil, que manifestamente tem dificuldade de punir certas classes sociais, é algo extremamente conservador", diz Barbosa.
aquele abraço,
S.Bruno
De: Rogerio Schietti Machado CruzEnviada: sex 12/9/2008 19:13Para: Amom Albernaz Pires; Membros ativosAssunto: RES: Interceptações - opinião dos Procuradores da República
Colegas,
poucas vezes li uma reflexão tão dura, porém equilibrada e consistente (irrespondível mesmo), como essa dos colegas do MPF. Creio que, até por dever cívico, deveríamos replicar ao maior número possível de pessoas, o desabafo de quem, como todos nós, às vezes se desanima com os rumos de nossa justiça criminal.
Rogerio Schietti

-----Mensagem original-----De: Amom Albernaz Pires Enviada em: sexta-feira, 12 de setembro de 2008 14:17Para: Membros ativosAssunto: Interceptações - opinião dos Procuradores da República
Pronunciamento dos Procuradores da República responsáveis pelo Caso Sundown – um manifesto por uma melhor distribuição da Justiça Criminal
STJ anulou ontem as interceptações telefônicas do Caso Sundown

O Superior Tribunal de Justiça, apreciando ontem a legalidade de monitoramento telefônico realizado por aproximadamente dois anos, de 2004 a 2006, no Caso Sundown, julgou ilegais as decisões que autorizaram a medida por suposta falta de fundamentação. Esteve em debate ainda a validade da renovação dos monitoramentos por mais de 30 dias.
Foi acertada a decisão?

As decisões anuladas foram proferidas pelo Juiz Titular da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, célebre pela responsabilidade com que supervisionou e julgou diversas investigações de crimes de lavagem de dinheiro. Quem leu as decisões pôde observar que aquelas que determinaram o monitoramento foram prolatadas explanando as razões que indicavam existir um crime e que lançavam suspeita sobre o titular do terminal telefônico monitorado. Já aquelas que determinaram a renovação dos monitoramentos se fundaram na necessidade de aprofundamento da apuração decorrente dos indícios da prática continuada dos crimes. O Juiz também não deixou de mencionar a gravidade dos crimes em investigação, dentre eles crimes contra o sistema financeiro nacional, falsidades, uso de empresas de fachada, sonegação, descaminho, corrupção e lavagem de dinheiro, bem como que a necessidade de que a investigação se alongasse no tempo decorria da complexidade dos crimes praticados e da quadrilha, com estrutura empresarial, que se articulou para sua efetivação.

E não se tratavam de meras especulações, como bem demonstrou o resultado dos trabalhos. As pessoas investigadas sofreram, em seguida aos monitoramentos, vários processos criminais que lhes imputaram a prática de muito mais de cem crimes, dentre eles delitos de falsidade, descaminho, formação de quadrilha, contra o sistema financeiro nacional e de corrupção. Os dois empresários do Grupo Sundown que coordenaram os crimes já contavam com mais de 40 anos de condenação cada um. Ainda existem dezenas de outros inquéritos tramitando aguardando conclusão para que, se não fosse a decisão do STJ, fossem intentadas outras ações criminais para responsabilizar aqueles que cometeram os delitos.

Se dos efeitos é possível conhecer a causa, está mais do que evidente que as decisões determinando as interceptações e sua renovação estavam adequadamente fundamentadas.

Cumpre também ressaltar que a legalidade dessas interceptações telefônicas já havia sido analisada pelo Juiz e também por três Desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que as reputaram regulares, confirmando em segundo grau a condenação de empresários do Grupo Sundown pela corrupção de Auditores da Receita, crimes desvelados através dos monitoramentos.

Aqui na base da pirâmide ninguém está brincando de super-herói ou querendo olhar a vida alheia pelo buraco da fechadura. Não existe qualquer notícia do uso indevido do conteúdo dos diálogos monitorados. O que ocorreu, singelamente, é que foram constatados crimes às dezenas e foram usados os meios legais para apurá-los na medida do necessário. Se os crimes se repetiram às dezenas, engendrando a necessidade de perpetuação dos monitoramentos, a responsabilidade por isso não é do Estado, mas sim dos investigados.

O que se deve questionar é se existe mesmo a alegada “invasão de privacidade” quando o criminoso:

1.é acusado, recentemente, da prática de mais de 245 crimes... se fôssemos tomar o número de dias em dois anos de monitoramentos, houve acusações à razão de 1 crime para cada 3 dias;

2.está sendo investigado em dezenas de inquéritos pela prática de vários outros delitos, dentre eles o de lavagem de dinheiro, destacando-se que no último dia 04 foi recebida pela Justiça nova denúncia contra os empresários do Grupo Sundown;

3.é acusado e condenado pela prática do crime de corrupção de agentes públicos, em sentença confirmada pelo Tribunal Regional, segundo a qual os Auditores deixaram de tomar em conta, indevidamente, bases tributáveis superiores a R$ 60 milhões;

4.apresentava vários cuidados nas conversas por telefone, chegando a usar codinomes e códigos, fato que obriga a estender o período de monitoramento;

5.usava estratagemas de ocultação e obstrução da descoberta da verdade, empregando testas-de-ferro, laranjas e off-shores nos contratos sociais;

6.é condenado, em apenas três dos processos criminais recentes, a penas que somam entre 45 e 49 anos de prisão, fato que mostra a freqüência e a gravidade dos delitos;

7.sonegou, de acordo com apenas alguns procedimentos tributários concluídos até o momento, mais de R$ 70 milhões, os quais deixaram de reverter em favor da sociedade;

8.evadiu mais de R$ 21 milhões para o exterior e praticou crimes de descaminho que geraram autos de infração de aproximadamente R$ 14 milhões de reais;

9.com franco desrespeito a decisão da mais alta Corte do País (STF) fugiu para o Uruguai, local onde até hoje permanece impune.
A decisão de ontem fez uma escolha: optou tutelar a privacidade de alguns cidadãos, que usavam essa privacidade e seu livre-arbítrio para cometer crimes em proveito próprio e prejuízo de toda a sociedade. Os Ministros rejeitaram, ainda, não só o direito de investigação do Estado, mas a própria proteção dos bens jurídicos violados com os crimes, a lisura e probidade na Administração Pública e na condução dos negócios empresariais.

A validade da renovação consecutiva do monitoramento sempre foi admitida e é absolutamente necessária para apurar qualquer crime com razoável complexidade probatória, seja para demonstrar a ocorrência do crime seja para desvelar todos os seus autores. Não sem razão em todas as Operações Policiais recentes os monitoramentos se desenvolveram por muito mais do que tal prazo, o que não foi – nesses outros casos – fundamento para sua invalidação.
Dois pesos, duas medidas

Quem realmente leu as decisões e tem um pouco de experiência no trabalho de investigação criminal sabe que as decisões proferidas são, no critério fundamentação, dez vezes melhores do que inúmeras decisões similares proferidas quando a investigação tem por objeto o tráfico de drogas, roubo, estelionato e outros crimes praticados por pessoas pobres ou menos favorecidas. Contudo, jamais são julgadas nulas as decisões de interceptação quando o crime é esse.

Cumpre fazer um parênteses. Assim como nas investigações sobre o tráfico se nota que os criminosos usam codinomes e códigos nas conversas, do que decorre a necessidade de alongamento das apurações para que o significado das expressões possa ser devidamente compreendido, no Caso Sundown também se verificou o uso de codinomes e códigos entre empresário do Grupo e agentes públicos por eles corrompidos.
Fechando parênteses, pode-se imaginar que o tratamento diferenciado, mais benéfico, concedido aos réus do Caso Sundown não decorre do fato de serem ricos e freqüentarem a alta sociedade, isto é, de “identificação”, ou de terem excelentes advogados que ensejem uma análise mais acurada dos fatos por parte das Autoridades, mas sim do fato de que no caso de tráfico a gravidade do crime justifica a relativização das exigências formais. A dificuldade de se desenharem as vítimas concretas de crimes de colarinho branco, como sonegação, descaminho, contra o sistema financeiro, de lavagem de ativos e de corrupção, contudo, não ameniza o fato de que as conseqüências desses crimes são tão ou mais severas para com a população e, especialmente, para com o povo carente, já que o Estado se vê privado de recursos com que poderiam ser salvas vidas em novos hospitais, através de novos médicos, de novas ambulâncias... milhares de vidas de crianças cujo cuidado está à margem da “reserva do possível” que guia a atuação estatal teriam as vidas transformadas para melhor... sem falar num melhor atendimento pelas polícias, seguridade social, assistência básica etc. Enquanto um crime considerado bastante grave, o homicídio, ceifa uma vida cujo rosto é identificável, os crimes de colarinho branco ceifam milhares de vidas sem rosto.

Claro que também se pode cogitar que o resultado do julgamento foi afetado pelo momento histórico, em que se estão a condenar grampos realizados ilegalmente e em que se buscam definir critérios mais rígidos para o desenvolvimento dos monitoramentos. Se isso aconteceu, mais lamentável ainda, pois não se está a tratar de monitoramento clandestino, mas sim regularmente pedido e determinado judicialmente, dentro dos parâmetros legais, amparado em provas de crimes graves e que demandavam investigação. Isso nada tem a ver com grampos conduzidos à margem do Estado, irregularmente, por arapongas.
Luta contra o Sistema – o contexto da decisão de ontem

Já é recorrente entre as Autoridades responsáveis pela investigação e a repressão ao crime de colarinho branco, no Brasil, dizer-se que nossa tarefa é uma luta contra o sistema. E nos referimos ao sistema formado pelas Leis e as Decisões feitas em Brasília.

Quanto às Leis, muito embora várias editadas, como a Lei de Lavagem de Dinheiro, tenham representado avanços significativos, o sistema ainda tem muitas lacunas que aproveitam a réus abastados: disciplina um processo penal lento, cheio de recursos, cujo trâmite é propositalmente estendido por estratégias de advogados hábeis; admite a prescrição retroativa, isto é, o “cancelamento” do processo em razão da demora, um instituto peculiar ao Brasil e que só favorece criminosos efetivamente condenados; e possibilita infinitos habeas corpus a qualquer réu preso que disponha de condições econômicas para promover seu patrocínio. Em relação ao habeas corpus, prevenindo qualquer compreensão equívoca do que ora se sustenta, certo é que é essencial à defesa direta da liberdade e nesse sentido deve ser amplamente admitido. Contudo, tem sido manejado para defesa de teses jurídicas que apenas indiretamente atingem o direito de locomoção, sem facultar à outra parte – o Ministério Público – igualdade de condições para reforma da decisão. Um simples exemplo: em cada linha de HC impetrados da primeira à última instância, o que pode ser reiterado habilmente inúmeras vezes por cada réu, abrem-se pelo menos sete chances de vitória ao réu e, uma vez vencido pela defesa em determinado Tribunal, não existe para o Ministério Público nenhum recurso eficiente para reforma da decisão. No caso específico do HC concedido ontem no Caso Sundown, não há recurso a ser interposto pelo Ministério Público, quando a defesa, se perdesse, poderia manejar novo HC com semelhante teor perante o STF, fato que manifesta uma disparidade de armas. Além disso tudo, ainda há Leis que ridicularizam o papel do Ministério Público, da Polícia e da Justiça Criminais – como a Lei do PAES, que previu a extinção da punibilidade do crime praticado pelo sonegador sempre que este pagar o crédito tributário. Qual a conseqüência dessa Lei? Depois de um desgastante procedimento de investigação todo o trabalho desses órgãos será jogado no lixo pelo pagamento do crédito tributário por aquele que tem condições econômicas para tanto, de modo que são processados criminalmente, com sucesso, apenas os pobres, e enquanto estes não reunirem condições para quitação do débito.

Quanto às Decisões feitas nos Tribunais de Brasília, referentes à área criminal, convém aqui retificar a frase que tem sido tão empregada: “a Polícia prende, a Justiça solta”, para, com correção, dizer “a Justiça prende, a Justiça solta” ou, para parecer menos esquizofrênica, “os Juízes prendem, os Tribunais soltam”. Isso porque todos os mandados de prisão preventiva e temporária são expedidos necessariamente por Juízes.

Assim foi no recente e célebre Caso Daniel Dantas, por exemplo. A liberdade de Dantas, galgada em HC no STF, era só uma questão de tempo... se o STF indeferisse a impetração, esta seria renovada “n” vezes até ser deferida sob um novo fundamento, ou quando alterada a composição de uma Turma, ou quando alterado o Relator do caso... e, por fim, ainda que, com surpresa, a defesa não vencesse nenhum HC em nenhuma instância, sabe-se que réus ricos presos tendem à depressão e a problemas de saúde, merecendo, no entendimento dos Tribunais, prisão domiciliar, como aconteceu no Caso do Juiz Lalau e quase aconteceu no Caso Sundown, em que, de modo perspicaz, o Ministro Joaquim Barbosa, no STF, abriu dissidência determinando internamento hospitalar com escolta, restando vencedor. E não foi surpresa que, tão logo pronto um laudo mostrando que os presos do Caso Sundown tinham condição de ser mantidos em um complexo médico penal, de modo que seriam conduzidos de volta ao sistema penitenciário, não obstante a debilitada condição de saúde, eles fugiram para outro país. Outro caso de decisão que fulminou milhares e milhares de processos criminais, fazendo pouco caso para os milhões gastos e para qualquer senso de prevenção e repressão ao crime foi aquela, proferida pelo STF, segundo a qual a investigação de crime tributário só pode ocorrer após o lançamento definitivo do crédito tributário. Antes dessa inovação daquela Corte milhares de casos foram julgados sem, evidentemente, seguir tal orientação, até então inexistente, e acabaram por ser, com o advento dessa exigência, anulados, beneficiando também aí milhares de criminosos de colarinho branco. Não é incomum também se repetir, em nosso meio, que muitos dos Ministros dos Tribunais Superiores, em matéria criminal, não mantêm seus pés na realidade. Com efeito, vários nunca buscaram conhecer as dificuldades, necessidades e ignoram mesmo aquilo que é impossível na prática da apuração criminal, acabando por conceder valor demasiado a aspectos formais. Já esteve em discussão, invocando novo exemplo, a necessidade de degravação integral dos áudios interceptados, tese que teve a simpatia de julgadores mas que, na prática, é absolutamente inconcebível por impossibilidade material (de recursos humanos) de implementação.

Em resumo, quando de trata de perseguir criminosos de colarinho branco, estamos em todo o tempo lutando contra o sistema.

Basta contar quantas pessoas muito ricas estão presas, em caráter preventivo ou definitivo, em todo o país, pela prática de crimes financeiros, tributários ou de lavagem de ativos. Há dúvidas se a contagem passará dos dedos de uma mão. Ou é suficiente lembrar que o Supremo Tribunal Federal jamais condenou criminalmente ninguém, muito embora inúmeros inquéritos e processos criminais tenham lá tramitado.

Enquanto tais delinqüentes do alto escalão social gozam de sua fortuna, angariada com prejuízos milionários à sociedade, de outra parte inúmeros réus sequer condenados estão presos em Delegacias Públicas pela prática de crimes simples, como furtos (subtração sem violência ou ameaça) de pequenos valores. O rigor que lhes é aplicado, por alguma razão, não cabe àqueles primeiros.

Dentro desse contexto, o que deveria ser surpresa já não é: o tema da pauta da reunião entre as mais altas autoridades do Estado, Presidente do STF e Presidente da República, após um escândalo envolvendo a prática de crimes gravíssimos por figurões, não tinha por objetivo ampliar os mecanismos de investigação para reprimir e prevenir a prática desses crimes, mas sim reprimir abusos de autoridade nas apurações criminais, ampliando as garantias das pessoas investigadas. Claro que é importante que se assegurem as garantias fundamentais do indivíduo, agora outra coisa é ser esse o tema de reunião excepcional entre as maiores autoridades do Estado logo em seguida ao escândalo indicando a prática de crimes que mereciam forte censura.
Tudo isso mostra que a alta administração da Justiça Penal no Brasil não é, infelizmente, séria. O julgamento de ontem foi mais um capítulo desse livro.
Nós e o povo brasileiro estamos cansados de uma Justiça Criminal que, alegando as mais variadas filigranas jurídicas – que existem e podem ser encontradas e criadas às centenas -, não produz resultados práticos contra criminosos ricos e poderosos.
Conseqüências da decisão

A decisão proferida ontem lançou por terra boa parte de um longo e profundo trabalho conduzido com extrema seriedade e que tomou milhares de horas de vários servidores públicos. Foram trabalhos realizados de dia, de noite e de madrugada por Agentes e Delegados de Polícia Federal, Procuradores da República, Técnicos e Analistas do Ministério Público Federal, Auditores e Técnicos da Receita Federal, e ainda Juízes Federais e Servidores da Justiça Federal.

Ainda será devidamente aquilatado o que poderá ser salvo e o que está perdido, mas certamente restarão prejudicados:

- processo criminal em que foram condenados por corrupção empresários e auditores fiscais, o qual já havia sido confirmado pelo TRF da 4ª Região;

- cerca de 40 inquéritos instaurados para apuração dos mais variados crimes como de quadrilha ou bando, sonegação fiscal (vários), descaminho, contra o sistema financeiro nacional (diversos), falsidade ideológica (muitos), inclusive de documento público, falsidade material de documento público, fraude à execução, fraude processual, fraude em arrematação judicial, corrupção ativa e passiva (inclusive de servidor da Justiça, de servidor do Banco Central), tráfico de influência, lavagem de dinheiro, contra a lei de licitações, estelionato, quebra de sigilo funcional, inserção de dados falsos em sistemas de informação e advocacia administrativa;

- parte de ações penais deflagradas pela prática de crimes contra o sistema financeiro nacional, de descaminho, de falsidades e de formação de quadrilha;

- parte de investigação pela prática de lavagem de ativos;

- parte de bloqueios de valores que superam a casa do R$ 100 milhões de reais.
Foram, assim, enterrados, inquéritos e processos criminais gravíssimos, isentando de responsabilidade não só os empresários envolvidos em crimes fiscais, contra a Administração Pública, de corrupção e de lavagem de dinheiro, mas também agentes públicos corrompidos.
Não há recurso eficiente a ser manejado para revisar a decisão.
Conclusão

Tudo isso faz lembrar a frase de um experiente colega segundo o qual “tudo é feito para não dar certo, o nosso trabalho é só tornar isso mais difícil”. Mesmo cansados e frustrados com o resultado, preferimos renovar as esperanças com a mesma fé em que Miquéias se apoiou em seu livro após descrever, no capítulo 7, um cenário jurídico e político hostil. E, até que tudo isso mude, e que consigamos efetivamente promover justiça em todos os níveis sociais, tentaremos, pelo menos, tornar mais difícil a injustiça.

Por fim, cumpre ressaltar que os subscritores são apenas dois dos vários Procuradores da República que se labutaram para dificultar que, nesse caso, tudo desse errado.
Deltan Martinazzo Dallagnol e Orlando Martello Junior
procuradores da República da Procuradoria da República no Paraná

(10/9/2008)

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Assessoria de comunicação
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