Autos:
Ação civil pública
Requerente:
MINISTÉRIO PÚBLICO
Réu:
DISTRITO FEDERAL
EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA PRIMEIRA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO DISTRITO FEDERAL,
O MINISTÉRIO PÚBLICO, pelos Promotores de Justiça que esta subscrevem, nos termos da Constituição da República (art. 6º; art. 127; art. 129, incs. III e IX; art. 204; e art. 227), da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente –, ajuíza a presente
ação civil pública
com pedido de antecipação da tutela jurisdicional em face do
DISTRITO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público interno, representada pelo Procurador-Geral do Distrito Federal, nos termos da Lei Orgânica do Distrito Federal (arts. 110 e 111),
pelos fatos que passa a expor.
I — Dos fatos
2. Com esta ação civil pública pretende-se que o Distrito Federal seja compelido a instalar novos Conselhos Tutelares, para tanto, reconhecendo-se, incidenter tantum, a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei distrital 2.640, de 18 de dezembro de 2000. Os Conselhos Tutelares foram criados no Distrito Federal pela Lei 234 de 15 de janeiro de 1992. Nessa Lei previa-se que deveria existir um Conselho Tutelar em cada Região Administrativa, nos seguintes termos:
Art. 16. O Conselho Tutelar terá sua sede na própria Região Administrativa, localizada em uma entidade de atendimento à criança e ao adolescente ou em outro local cedido pelo Governo do Distrito Federal e funcionará, em dias úteis, das 08:00 às 19:00 horas.
§ 1º Os Conselheiros Tutelares atenderão regularmente nos dias úteis e manterão plantões nos demais dias e horários.
§ 2º As decisões do Conselho Tutelar serão tomadas em reunião de seus Membros, com a presença da maioria.
§ 3º Os casos atendidos pelo conselheiro de plantão serão levados ao conhecimento do Conselho Tutelar, em sua próxima reunião.
§ 4º O Governo do Distrito Federal assegurará condições para a instalação e funcionamento de cada Conselho Tutelar.
3. No entanto, entre 1995 e 2000, apenas cinco Conselhos Tutelares foram implantados de fato. E funcionavam precariamente. Ocorre que, na Lei 2.640, de 13 de dezembro de 2000, estabeleceu-se a existência de um Conselho Tutelar em cada Circunscrição Judiciária do Distrito Federal, sediado na mesma Região Administrativa do Fórum, sendo: I – Brasília; II – Brazlândia; III – Ceilândia; IV – Gama; V – Paranoá; VI – Planaltina; VII – Samambaia; VIII – Santa Maria; IX – Sobradinho; X – Taguatinga (art. 3º). É relevante considerar que, depois da promulgação da Lei Orgânica do Distrito Federal, em 8 de junho de 1993, foram criadas, além das 13 então já existentes, 16 novas Regiões Administrativas sem que sequer se cogitasse de criação de Conselhos Tutelares.
4. Na verdade, a possibilidade de manutenção de serviços descentralizados é que deveria nortear a criação de Regiões Administrativas, especialmente em razão da prioridade absoluta que crianças e adolescentes deveriam receber. Mas ignoraram-se completamente os direitos das crianças e adolescentes. Esqueceu-se de que sem desenvolvimento social o progresso econômico jamais será atingido. Confira-se na tabela a seguir a cronologia da criação das 16 Regiões mencionadas:
Tabela 1 – Regiões administrativas do Distrito Federal criadas depois de 8 de junho de 1993:
REGIÃO ADMINISTRATIVA
LEI DE CRIAÇÃO
São Sebastião – RA 14
Lei 467, de 25 jun. 1993
Recanto das Emas – RA 15
Lei 510, de 28 jul. 1993
Riacho Fundo – RA 17
Lei 620, de 15 dez. 1993
Lago Norte – RA 18
Lei 641, de 10 jan. 1994
Lago Sul – RA 16
Lei 643, de 10 jan. 1994
Candangolândia – RA 19
Lei 658, de 27 jan. 1994
Águas Claras – RA 20
Lei 3.153, de 6 maio 2003
Riacho Fundo II – RA 21
Lei 3.153, de 6 maio 2003
Sudoeste/Octogonal – RA 22
Lei 3.153, de 6 maio 2003
Varjão – RA 23
Lei 3.153, de 6 maio 2003
Park Way – RA 24
Lei 3.255, de 29 dez. 2003
Sobradinho II – RA 26
Lei 3.314, de 27 jan. 2004
Setor Complementar de Indústrias e Abastecimento – RA 25
Lei 3.315, de 27 jan. 2004
Jardim Botânico – RA 27
Lei 3.435, de 31 ago. 2004
Itapoã – RA 28
Lei 3.527, de 3 jan. 2005
Setor de Indústria e Abastecimento – RA 29
Lei 3.618, de 14 jul. 2005
5. Observa-se, inclusive, que, no período de vigência da Lei 234 de 1992, foram criadas seis Regiões Administrativas. E, depois da promulgação da Lei 2.640 de 2000, entre maio de 2003 e julho de 2005, foram criadas exatamente 10 Regiões Administrativas, conforme demonstra a cópia anexada, extrato do documento «Distrito Federal Síntese de Informações Socioeconômicas», obtido no sítio eletrônico da Codeplan
6. Poder-se-ia imaginar que nas regiões em que residem famílias de renda mais elevada não seria necessário Conselho Tutelar. Não se pode pensar dessa forma, considerando que nessas áreas ocorrem ameaças e violações a direitos das crianças e adolescentes. Ademais, os Conselhos Tutelares igualmente possuem atribuições políticas como assessorar o Poder Executivo na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento aos direitos da criança e do adolescente. De acordo com Consuelo Vidal de Oliveira Feijó (Os Conselhos Tutelares do Distrito Federal: realidades e perspectivas. Campo Grande, 2004. Monografia. Escola de Conselhos, UFMS), que, em curso de pós-graduação realizou profunda pesquisa sobre a situação dos Conselhos Tutelares no Distrito Federal, os conselheiros tutelares afirmaram não possuírem notícias de participação de nenhum conselheiro, ao longo de 13 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, na elaboração de proposta orçamentária para tais planos e programas (FEIJÓ, 2004, p. 41). Até esta data tal função não é exercida em plena Capital da República por nenhum dos Conselhos Tutelares exatamente por falta de tempo para tanto, apesar da enorme boa vontade dos Conselheiros Tutelares.
7. De outra parte, o Conselho Tutelar deveria atuar de forma itinerante para prevenir situações que representem simples ameaça a direitos de crianças e adolescentes, e adotar medidas para evitar que tais ameaças se convertam em violação de direitos. Tais atribuições até hoje ainda não foram exercidas no Distrito Federal, haja vista a precariedade dos Conselhos Tutelares, o que impõe atuação sempre depois da violação. É necessário, além disso, observar que o Conselho Tutelar deveria funcionar 24 horas por dia, em regime ininterrupto, mesmo que em sistema de plantão, exatamente como previa a Lei 234 de 1992, por prestar serviço de natureza essencial e permanente. Hoje, a Gerência de Ações Especiais da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda, nos horários noturnos e finais de semana e feriados, exerce atividades que são próprias do Conselho Tutelar, numa verdadeira usurpação de função, que não pode continuar. Os conselheiros, que não podem ser considerados meros servidores do Poder Executivo, em razão da natureza das funções que desempenham, não podem estar submetidos a regime de ponto ou de cumprimento de carga horária mínima. Eles devem estar disponíveis para a sociedade. São verdadeiros agentes políticos, na teoria clássica dos agentes públicos, integrantes de órgão autônomo, submetido a normas especiais. Relativamente à questão do Plantão, esta Promotoria de Justiça expediu a Recomendação 3, de 6 de junho de 2005, que também instrui a petição inicial.
8. A pesquisadora Consuelo Vidal de Oliveira Feijó menciona que os conselheiros tutelares apontaram como fatores que dificultam sua plena atuação: (1) a falta de infra-estrutura adequada nos conselhos (automóveis, materiais de expediente, espaço físico, recursos humanos); (2) a rede de atenção encontra-se fragmentada, pois os programas são insuficientes para o atendimento integral da criança e do adolescente; (3) o desconhecimento das atribuições do Conselho Tutelar por parte da comunidade local e, por vezes, até dos próprios integrantes da rede; (4) o número de casos encaminhados aos conselhos é superior à capacidade de atendimento dos conselheiros; (5) insuficiência de políticas públicas voltadas ao atendimento da criança e do adolescente (faltam vagas nas creches, programas de atendimento de toxicômanos, programas de promoção às famílias em situação de necessidade); (6) a falta de capacitação sistemática e continuada dos conselheiros tutelares; (7) falta de compromisso dos órgãos governamentais e da coordenação dos Conselhos Tutelares para a garantia do pleno funcionamento (FEIJÓ, 2004, pp. 48-49). A Câmara Legislativa do Distrito Federal em estudo mais recente aponta as mesmas deficiências (BRASÍLIA. Câmara Legislativa do Distrito Federal. Comissão de Defesa de Direitos Humanos, Cidadania, Ética e Decoro Parlamentar. Condições de funcionamento dos Conselhos Tutelares: relatório 2005).
9. Evidencia-se novamente que o conceito de Circunscrição Judiciária como âmbito de atuação do Conselho Tutelar não é adequado quando se tem em mente a população residente. De acordo com os dados divulgados pelo Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, que divulga o Quadro Demonstrativo População X Eleitorado por Região Administrativa do Distrito Federal (cópia anexada) apenas para exemplificar, em junho de 2008, a população da Região Administrativa de Brasília, que abrange Asa Norte, Asa Sul, e Vila Planalto, é de 204.836 habitantes; a de Ceilândia é de 360.447 habitantes; a de Planaltina é de 208.044 habitantes; a de Taguatinga é de 271.543 habitantes.
10. Todos esses fatos, com os dados até então disponíveis, relativamente à deficiência na garantia dos direitos das crianças e adolescentes, foram levados ao conhecimento do Poder Executivo do Distrito Federal, inclusive com sugestão de medidas a serem adotadas. O último ato da atuação extrajudicial desta Promotoria de Justiça acerca do tema se deu com o encaminhamento do Ofício 4.319/2008-MPDFT/PDIJ, de 31 de outubro de 2008, com o qual descrevemos todo o esforço desenvolvido desde o início do mandato da atual gestão para adequar o marco legal dos Conselhos Tutelares de forma consensuada, para recomendar e fixar o prazo de 10 de novembro de 2008 para que o Governador do Distrito Federal adotasse as medidas pertinentes.
11. Mesmo com todo esse trabalho de verdadeira parceria para sensibilização da chefia do Poder Executivo, que em razão disso não pode alegar o desconhecimento da legislação, a situação não se modificou até o presente momento. Nada foi feito e não há qualquer sinalização nesse sentido. Uma demonstração de completo descaso, sem que fosse enviada qualquer justificativa formal a esta Promotoria de Justiça, em flagrante e descabido desrespeito à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e Adolescente e à própria Lei Orgânica do Distrito Federal. Uma demonstração de que se pretende continuar violando direitos das crianças e adolescentes sem qualquer punição. Diante disso, restou ao Ministério Público ingressar com a presente medida judicial.
III — Dos fundamentos jurídicos do pedido
A — Dos parâmetros nacionais e do Distrito Federal
12. Os pedidos formulados ao final encontram fundamento na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei Orgânica do Distrito Federal, assim como na Lei da Ação Civil Pública.
13. Na Constituição Federal assenta-se o «dever da família, da sociedade e do Estado» de «assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão» (art. 227). No § 7° desse dispositivo estabelece-se que «no atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art. 204». No artigo 204 da Constituição Federal, por sua vez, que versa sobre a organização das ações governamentais na área da assistência social, fixam-se duas diretrizes básicas: a «descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social» (inc. I) e a «participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis» (inc. II). Sobre tais, explica TÂNIA DA SILVA PEREIRA (Direito da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 558):
As diretrizes de descentralização e de municipalização acham-se diretamente relacionadas, na medida em que a criança, o jovem e sua família vivem, efetivamente, na comunidade e devem ter, na esfera municipal, o desenvolvimento dos principais projetos e programas de proteção e atendimento.
Há que se entender a descentralização como um princípio constitucional norteador do ordenamento jurídico.
14. Coube ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que é lei de normas gerais, portanto infra-constitucional, em cumprimento ao artigo 204 e inciso II, da Constituição Federal, estabelecer a forma de participação popular. As alíneas «c» e «d» do parágrafo único do artigo 4º do Estatuto preconizam que a garantia da prioridade compreende «preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas» e «destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude». No artigo 259, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabeleceu-se que «compete aos Estados e Municípios promoverem a adaptação de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios estabelecidos nesta lei».
15. No Estatuto da Criança e do Adolescente também se determina que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 86). Também se aponta como diretriz da política de atendimento a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, como órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurando a participação popular paritária por meio de organizações representativas, nos termos de leis federal, estaduais e municipais (art. 88 e inc. II). Necessário salientar que a representação paritária do Poder Público e da sociedade civil organizada, possibilita legitimidade democrática às deliberações dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Por outro lado, no artigo 131 e seguintes, do Estatuto da Criança e do Adolescente, disciplina-se a criação do Conselho Tutelar, órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente.
16. Na Resolução 105 de 2005, do Conanda consta que as decisões tomadas pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, no âmbito de suas atribuições e competência, vinculam as ações governamentais e da sociedade civil organizada em respeito aos princípios constitucionais da participação popular e da prioridade absoluta à criança e ao adolescente (art. 2º, § 2º). As Resoluções do Conanda, conseqüentemente, são vinculantes para as pessoas jurídicas de direito público que compõem a República Federativa do Brasil. Necessário sempre ressaltar, no entanto, que a competência do Conanda para estabelecer normas gerais (válidas para União, Estados, Distrito Federal e Municípios) está assentada na própria Constituição Federal (art. 227, § 7º e 204). A descentralização político-administrativa é a própria organização do País em União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Daí, o inciso I do artigo 204 é claro: cabe à União coordenar e estabelecer normas gerais para todo o sistema de garantia dos direitos das crianças e adolescentes. A coordenação e a execução dos respectivos programas cabe às esferas estadual e municipal. O Distrito Federal assume competências reservadas a Estados e Municípios. Mas no atendimento dos direitos da criança e do adolescente as ações governamentais também devem ser organizadas com base na diretriz de participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. Esse o fundamento constitucional tanto para a obrigatoriedade da existência dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente com poder deliberativo nas esferas federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, como para a existência dos Conselhos Tutelares.
17. A partir disso é que na Lei 8.242, de 12 de outubro de 1991, cria-se o Conanda e confere-se-lhe, entre outras, competência para: (I) elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei 8.069 de 1990; (II) zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente; (III) dar apoio aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, aos órgãos estaduais, municipais, e entidades não-governamentais para tornar efetivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos na Lei 8.069 de 1990; (IV) avaliar a política estadual e municipal e a atuação dos Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente (art. 2º). Por isso, não há como o Distrito Federal, um Estado, ou um Município, descumprir uma norma do Conanda. Também o Poder Judiciário e o Ministério Público estão vinculados às decisões dos conselhos.
18. Nesse contexto, o Conanda aprovou a Resolução 75, de 22 de outubro de 2001, dispondo sobre os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares (DOU, 14 nov. 2001). Na mesma ocasião, o Conanda decidiu elaborar um conjunto de recomendações, na expectativa de que se avance na efetivação dos Conselhos Tutelares, principalmente no que diz respeito à adequação da legislação local. Nessas recomendações, assinalou-se:
[...]
Por considerar de fundamental importância para a implementação de uma política de atendimento eficiente para o município, o CONANDA recomenda a criação de um Conselho Tutelar a cada 200 mil habitantes, ou em densidade populacional menor quando o município for organizado por Regiões Administrativas, ou tenha extensão territorial que justifique a criação de mais de um Conselho Tutelar por região, devendo prevalecer sempre o critério da menor proporcionalidade.
Além das possibilidades acima, ressalta-se que outras realidades devem ser consideradas para a criação de mais Conselhos Tutelares, prevalecendo, de qualquer forma, o princípio constitucional da prioridade absoluta, notadamente no que tange à destinação privilegiada de recursos para o atendimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente.
[...]
19. No caso presente, se, nos termos da Lei 234 de 1992, deveria haver um Conselho Tutelar em cada Região Administrativa, não se pode aceitar que norma posterior, que deveria aperfeiçoar o sistema, os reduza para um em cada Circunscrição Judiciária. Vincular os Conselhos Tutelares a um conceito estabelecido em lei federal constitui retrocesso proibido pela Constituição Federal e pela Lei Orgânica do Distrito Federal. Levou-se em conta a demanda pelo Judiciário, que é muito menor do que a demanda pela garantia dos direitos das crianças e adolescentes, pois a atuação dos Conselhos Tutelares objetiva, exatamente, a desjudicialização do atendimento e a competência é diversa da área judicial, abrangendo uma atuação política e comunitária, além do atendimento direto e personalizado das crianças, adolescentes e respectivas famílias com direitos ameaçados ou violados.
20. Ademais, quando na legislação federal se impõe a criação do Conselho Tutelar como colegiado de atendimento a crianças, adolescentes e famílias, privilegia-se o princípio da descentralização, tão caro à Constituição da República, reproduzido até com mais ênfase na Lei Orgânica do Distrito Federal. Entende-se que um grupo de pessoas escolhidas pela e conhecidas na comunidade estaria em melhores condições de avaliar e decidir sobre qual medida deve ser aplicada em cada caso que surgir. É a comunidade local, articulada nos Conselhos Tutelares, que se responsabiliza pela garantia de que as crianças e adolescentes que ali vivem tenham um desenvolvimento saudável. Ao prever a descentralização política e administrativa, o constituinte de 1988, sensibilizado pela mobilização social, rompeu com o autoritarismo e acolheu princípios de democracia participativa que estão reproduzidos na Lei Orgânica do Distrito Federal.
21. A propósito, registre-se, ainda, que na Lei Orgânica do Distrito Federal há diversos dispositivos que enfatizam a descentralização por regiões. Assim, prevê-se que «o Distrito Federal organiza-se em Regiões Administrativas, com vistas à descentralização administrativa, à utilização racional de recursos para o desenvolvimento sócio-econômico e à melhoria da qualidade de vida» (art. 10) e, textualmente:
CAPÍTULO VII
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Art. 267. É dever da família, da sociedade e do Poder Público assegurar à criança e ao adolescente, nos termos da Constituição Federal, com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, constrangimento, vexame, crueldade e opressão.
§ 1º O Poder Público, por meio de ação descentralizada e articulada com entidades governamentais e não governamentais, viabilizará:
I - o atendimento à criança e ao adolescente, em caráter suplementar, mediante programas que incluam sua proteção, garantindo-lhes a permanência em seu próprio meio;
II - o cumprimento da legislação referente ao direito a creche, estabelecendo formas de fiscalização da qualidade do atendimento a crianças, bem como sanções para os casos de inadimplemento;
[...]
IV - o direito de cidadania de criança e adolescente órfãos, sem amparo legal de pessoas por elas responsáveis, com ou sem vínculo de parentesco;
V - o atendimento a criança em horário integral nas instituições educacionais.
§ 2º A proteção à vida é feita mediante a efetivação de política social pública, que resguarde o respeito à vida desde a concepção, bem como ampare o nascimento e desenvolvimento da criança em condições dignas de sobrevivência.
Art. 268. As ações à infância e adolescência serão organizadas, na forma da lei, com base nas seguintes diretrizes:
I - descentralização do atendimento;
II - valorização dos vínculos familiares e comunitários;
III - atendimento prioritário em situações de risco, definidas em lei;
IV - participação da sociedade na formulação de políticas e programas, bem como no acompanhamento de sua execução, por meio de organizações representativas.
Art. 269. O Poder Público apoiará a criação de associações civis de defesa dos direitos da criança e adolescente, que busquem a garantia de seus direitos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
22. Como viu acima, na Lei Orgânica do Distrito Federal determina-se que «o Distrito Federal organiza-se em Regiões Administrativas, com vistas à descentralização administrativa, à utilização racional de recursos para o desenvolvimento sócio-econômico e à melhoria da qualidade de vida» (art. 10). Natural entender-se, pois, que, se os direitos das crianças e adolescentes devem ser assegurados pelo Estado com prioridade absoluta, não é possível aceitar a criação de uma Região Administrativa sem a existência de pelo menos um Conselho Tutelar e, a partir de 200 mil habitantes, mais um, como recomenda expressamente o Conanda desde 2001.
B — Da proibição do retrocesso
23. A respeito da proibição do retrocesso anteriormente referido, necessário mencionar que alguns autores, como INGO WOLFGANG SARLET (A eficácia dos direitos fundamentais, 4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, pp. 403-430), sustentam a existência de um princípio constitucional de proibição do retrocesso no domínio dos direitos fundamentais e sociais. O Estado só poderia afetar o conteúdo já realizado dos direitos sociais ou dos direitos derivados a prestações neles baseados quando se sustente numa comprovada incapacidade material, designadamente financeira, para manter a medida reconhecida de realização daqueles direitos ou quando a tal se veja compelido por força da necessária realização de outros valores de natureza constitucional.
24. SARLET explica que, no Direito Constitucional brasileiro, a proibição de retrocesso decorre de princípios de matriz jurídico-constitucional, como: (a) o princípio do Estado Democrático e Social de Direito, o qual traz consigo a necessidade de um mínimo de segurança jurídica, com sua manutenção abrangida pelo princípio da confiança, oferecendo segurança não só contra medidas retroativas, mas, de certa forma, contra aquelas de cunho retrocessivo; (b) o princípio da dignidade da pessoa humana, que exige que sejam implementadas medidas (prestações positivas) de concretização de direitos sociais, culturais, econômicos, por parte do poder público, com vistas a assegurar existência e vida digna para todos, afastando medidas de cunho retrocessivo que venham a minimizar tal concretude; (c) princípio da máxima eficácia e efetividade das normas que definem os direitos fundamentais (CF/1988, art. 5º, § 1º), com otimização e eficácia do princípio da segurança jurídica, que dá suporte contra medidas retrocessivas; (d) o fato de que a proteção contra as medidas retroativas (CF/1988, art. 5º, inc. XXXVI) não dão conta da gama de situações que integram a noção mais ampla de segurança jurídica, que encontra amparo na Constituição Federal (art. 5º, caput) e no princípio do Estado Social e Democrático de Direito; (e) o princípio da proteção da confiança, que exige do poder público a boa-fé nas relações com os particulares e o respeito pela confiança que os indivíduos depositam na estabilidade e continuidade da ordem jurídica; (f) os órgãos estatais estão vinculados não só à concretização das imposições constitucionais, mas, do mesmo modo, sujeitos a uma auto-vinculação em relação aos atos anteriores, como corolário do princípio da segurança jurídica e proteção da confiança (Ob. cit. pp. 418-419).
25. Na verdade, a proibição de retrocesso visa impedir que sejam frustrados direitos sociais culturais, econômicos, já concretizados, tanto na ordem constitucional como na infraconstitucional, em atenção aos objetivos da República Federativa do Brasil, que são os de: promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação; constituir uma sociedade livre, justa, solidária; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais. Esses objetivos fundamentais se realizam mediante a implementação e efetivação do Estado Democrático de Direito.
26. Na medida em que se lida com direitos fundamentais – e, nessa qualidade, subtraídos à disponibilidade do poder político –, quando se pretende retroceder no grau de realização atingido, e porque de verdadeiras restrições a direitos fundamentais se trata, o Estado não pode bastar-se, para fundamentar a afetação ou restrição do conteúdo dos direitos sociais ou dos direitos derivados a prestações neles baseados, com razões ou preconceitos de natureza ideológica não constitucionalmente sustentados ou com justificações meramente apoiadas em diferenças de opinião política próprias da variação conjuntural das maiorias de governo.
27. E, mesmo quando se sustente numa justificação objetivamente comprovável e de base constitucional, o Estado não pode afetar ou suprimir prestações existentes de uma forma arbitrária, discriminatória, com eventual violação de princípios constitucionais, como sejam o princípio da confiança no próprio Estado de Direito ou o princípio da igualdade ou o princípio da universalidade na titularidade e exercício de direitos fundamentais tais como os direitos civis e políticos.
28. E a questão da proibição do retrocesso não se coloca, em tese, apenas no que se refere aos direitos sociais. Pelo contrário, a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, econômico ou cultural, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de constituir unicamente) uma obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social ou para regular o direito econômico ou cultural, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada a esses direitos. Pronunciando-se em sentido idêntico, JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora, 2000, pp. 397-398) assinala:
Logo não é possível eliminar, pura e simplesmente, as normas legais e concretizadoras, suprimindo os direitos derivados a prestações porque eliminá-las significaria retirar eficácia jurídica às correspondentes normas constitucionais.
Como escreve MIGUEL GALVÃO TELES em geral acerca das normas programáticas, quando um comando vise criar uma situação duradoura, uma vez cumprido convola-se em proibição – de destruir essa situação.
29. Nessa linha, em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE reconheceu a existência de vedação genérica ao retrocesso (STF. Tribunal Pleno. ADI 2.065-DF, rel. orig. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, red. ac. Min. MOREIRA ALVES, julg. 17 fev. 2000, DJU 4 jun. 2004, p. 28). O Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE conheceu da ação por entender que «a norma impugnada é objeto idôneo para o controle abstrato de constitucionalidade pelo STF, porquanto, uma vez existente a regulamentação de um dispositivo da Constituição Federal, não pode haver retroação ao vazio legislativo anterior». A ementa de seu voto dizia da «admissibilidade, em tese, da inconstitucionalidade da lei simplesmente derrogatória de lei anterior necessária à eficácia plena de norma constitucional».
30. A propósito, LUIZ EDSON FACHIN (Sobre o projeto do código civil brasileiro: crítica à racionalidade patrimonialista e conceitualista, in Boletim da Faculdade de Direito, v. LXXVI, Coimbra, 2000, pp. 129-151), ao comentar retrocesso no então projeto de novo Código Civil, assinalva:
Em especial no que tange o Direito de Família e os Direitos da Criança e do Adolescente, tal retrocesso é de extrema gravidade. Esses temas estão disciplinados no Título VIII da Constituição, referindo-se à ordem social. Trata-se, pois, de direitos sociais, constitucionalmente protegidos. Afirma José Afonso da Silva: “A Constituição deu bastante realce à ordem social. Forma ela com o título dos direitos fundamentais o núcleo substancial do regime democrático instituído” (Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros, 1992, p. 705).
Canotilho aponta a proibição do retrocesso social, ao afirmar:
“O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, p. 321). (pp. 135-136)
31. No presente caso, a inconstitucionalidade que se aponta fundamenta-se no fato de a normatização local posterior, a Lei 2.640 de 2000, ter suprimido órgãos de garantia dos direitos das crianças e adolescentes que, de acordo com a norma anterior, a Lei 234 de 1992, já haviam sido conquistadas pelos cidadãos do Distrito Federal. Isso fez com que o atendimento pelos Conselhos Tutelares restasse praticamente inviabilizado que seja prestado com a celeridade necessária.
32. O Brasil adotou o denominado controle difuso de constitucionalidade das leis a partir do advento da República. Desde então, reconheceu-se a qualquer juiz, a qualquer Tribunal, a competência para declarar, incidentemente, a inconstitucionalidade de uma lei, nos casos a eles submetidos, dentro de suas respectivas competências.
33. Por esse controle, o reconhecimento de inconstitucionalidade de dada lei é subjacente à causa de pedir, daí, incidente, vez que consubstancia uma questão prejudicial, da qual depende o desate da lide. A apreciação do tema encontra-se nos fundamentos da sentença, não sendo, portanto, abrangidos pela coisa julgada, não havendo que se falar em pronunciamento de mérito sobre a matéria (Código de Processo Civil, art. 469).
34. Tal sistema de controle de leis ou atos normativos não se confunde com o denominado controle concentrado ou via de ação direta, no qual se procura, essencialmente, obter a declaração de inconstitucionalidade de lei, ou ato normativo, em tese, isto é, independentemente da existência de caso concreto. Na ação direta, a declaração de inconstitucionalidade é o objeto da ação, vale dizer, o próprio pedido.
35. Desse modo, coexistem os dois sistemas. O concentrado, que compete ao Supremo Tribunal Federal, tratando-se de lei ou ato normativo federal ou estadual frente à Constituição Federal (CF/1988, art. 102, I, a), assim como, ao Tribunal de Justiça local, em relação às leis ou atos normativos estaduais ou municipais contrários às Constituições Estaduais, e o difuso ou por via de exceção, permitido a todo e qualquer juiz ou Tribunal realizar no caso concreto a análise.
36. Assim como nas ações populares e mandamentais, a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo pode ser causa de pedir, e não o próprio pedido, de uma ação civil pública. É a posição que prevalece no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, sintetizada nos seguintes julgados cujas ementas se transcrevem:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OCUPAÇÃO DE LOGRADOUROS PÚBLICOS. LEI 754/1994 DO DISTRITO FEDERAL. PEDIDO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM.
1. O Ministério Público tem legitimidade ativa para propor ação civil pública com fundamento na inconstitucionalidade de leis ou atos normativos, desde que incidenter tantum. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF. Segunda Turma. RE-AgR 438328/DF, Min. EROS GRAU, julg. 24 jun. 2008, DJe 152, divulg. 14 ago. 2008, public. 15 ago. 2008).
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. CAUSA DE PEDIR. POSSIBILIDADE.
1. Não há óbice à propositura de ação civil pública fundada na inconstitucionalidade de lei, desde que a declaração de inconstitucionalidade seja causa de pedir e não faça parte do pedido principal ou subsidiário. Precedentes do Supremo e do STJ.
2. Recurso especial não provido. (STJ. Segunda Turma. REsp 886000/DF [2006/0192400-4], Min. CASTRO MEIRA, julg. 17 abr. 2008, DJe 9 mai. 2008).
C — Do dever do Distrito Federal de garantir a implantação e o funcionamento dos Conselhos Tutelares
37. Com fundamento na Constituição Federal, o legislador de normas gerais manteve-se fiel aos preceitos constitucionais, reproduzindo no Estatuto da Criança e do Adolescente, os deveres da família, da sociedade e do Estado de assegurar com absoluta prioridade os direitos das crianças e adolescentes (art. 4º). Por sua vez, de forma didática, explicitou o conteúdo mínimo do princípio da prioridade absoluta, compreendendo este, além de outros direitos, porquanto os exemplos não são taxativos, a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
38. Os direitos positivados na Constituição da República são comandos cogentes, com destinatários certos, os mandatários de cargos políticos, os gestores dos recursos públicos, na figura dos parlamentares e chefes do Executivo da União, dos Estados e dos Municípios. Tais direitos obrigam o administrador público, o qual, adstrito ao princípio da legalidade, não pode olvidar os comandos insculpidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei Orgânica do Distrito Federal e na Constituição Federal.
39. Expressa DALMO DE ABREU DALLARI, especialmente quando comenta a garantia de prioridade assegurada pela destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude:
Essa exigência legal é bem ampla e se impõe a todos os órgãos públicos competentes para legislar sobre a matéria, estabelecer regulamentos, exercer controle ou prestar serviços de qualquer espécie para promoção dos interesses e direitos de crianças e adolescentes. A partir da elaboração e votação dos projetos de lei orçamentária já estará presente essa exigência. Assim, também, a tradicional desculpa de “falta de verba” para a criação e manutenção de serviços não poderá mais ser invocada com muita facilidade quando se tratar de atividade ligada, de alguma forma, a crianças e adolescentes. Os responsáveis pelo órgão público questionados deverão comprovar que, na destinação dos recursos públicos disponíveis, ainda que sejam poucos, foi observada a prioridade exigida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. (In Estatuto da Criança e do Adolescente comentado, coordenação: Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio Garcia Mendez. 3ª edição: Malheiros, São Paulo, 2000, p. 29).
40. É o poder público o principal receptor dos preceitos emanados do princípio em comento, vez que este responde, em primeiro plano, pelo atendimento aos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Como ficou assente, a incumbência se mostra inescusável.
41. Nem mesmo por falta de verbas há de se liberar de tal obrigação o mandatário do cargo público, sendo dever do gestor distribuir o pouco do que dispõe, com prioridade, ao atendimento dos interesses da infância e da juventude. Somente com esta assertiva se alcança a dimensão do que propõe a Lei 8.069 de 1990, cujo mérito reside, justamente, em criar regras para que se respeitem a criança e o adolescente como cidadãos sujeitos de direitos e deveres, com prioridade absoluta, sobretudo dentro das políticas públicas.
D — Da possibilidade de o Poder Judiciário determinar a implantação dos Conselhos Tutelares
42. O controle judicial da atividade administrativa omissiva ou comissiva também se sustenta no princípio constitucional do direito à inafastabilidade da tutela jurisdicional, previsto na Constituição Federal (art. 5º, inc. XXXV). Todos os atos administrativos responsáveis por lesão ou ameaça de lesão a direito são a priori passíveis de controle judicial.
43. O Poder Judiciário como detentor de poder político deve atuar como agente de transformação da realidade, principalmente quando ela não se apresentar compatível com a preservação dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados.
44. Essa nova contextualização do Poder Judiciário não implica o superdimensionamento da função jurisdicional nem ingerência nas funções dos outros poderes. Quando o Poder Judiciário é provocado para analisar a conduta, na verdade está somente colaborando para a real identificação do interesse público, que é o fim a ser perseguido por todos os Poderes.
45. Faz-se necessário abandonar o dogma de que estaria o Poder Judiciário intervindo no Poder Executivo ao lhe determinar o cumprimento de suas obrigações legais de implantar e efetivar políticas públicas. Com isso, dar-se-á ao princípio da separação dos poderes uma interpretação mais atual e mais afinada com a realidade.
46. A propósito, o Desembargador SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA enfrentou a questão, ao transcrever os argumentos da sentença de lavra do Juiz de Direito JOÃO BATISTA COSTA SARAIVA (Comarca de Santo Ângelo, RS), em voto proferido no julgamento de recurso de apelação:
O que deve acabar, isso sim, é a caolha perspectiva de que há um confronto entre os poderes cada vez que há uma ação judicial envolvendo atos dos demais poderes. Isso deve ser visto com naturalidade, repito, pois se todas as manifestações do Poder – que em si é uno, não se olvide –necessariamente devem buscar o bem comum, as eventuais demandas judiciais que forem propostas, colocando em dúvida a preservação de tal finalidade, nada mais representam do que uma oportunidade que o sistema oferece para uma última e detida análise da questão, buscando garantir a efetiva consecução do interesse público. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação 596.017897, 7ª Câmara Cível, julg. 12 mar. 1997)
47. Disso, infere-se ser o princípio da prioridade absoluta aos direitos das crianças e adolescentes mais um vetor de limitação ao agir discricionário do administrador público. Tal conclusão decorre, em primeiro lugar, do próprio princípio da legalidade que deve nortear toda a pauta de ações dos integrantes do Poder Executivo, dogma esse inserto na Constituição Federal (art. 37) e na Lei Orgânica do Distrito Federal (art. 19).
48. Não há que se falar, por essa razão, em ingerência ou em falta de competência do Judiciário para determinar como deve ser o agir do administrador, porquanto é o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Orgânica do Distrito Federal, e a Constituição Federal, que o descreve no tocante aos direitos das crianças e adolescentes.
49. O assento constitucional do princípio da prioridade absoluta denota seu sentido norteador, verdadeira super-norma a orientar a execução e a aplicação das leis, bem como a feitura de diplomas de inferior hierarquia, tudo dentro da mais estrita legalidade.
50. Na discussão sobre a implementação dos bens-interesses constantes no Estatuto da Criança e do Adolescente jamais pode ser denegada qualquer pretensão deduzida em juízo sob o argumento de que o administrador público tem o discricionário poder de eleger prioridades e estabelecer prioridades, já que a Constituição Federal (art. 227), a Lei Orgânica do Distrito Federal (art. 267) ampliada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 4º), não estabelecem qualquer hierarquia entre os direitos ali reconhecidos como prioritários. Nesse sentido, os seguintes julgados:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONTRA O DISTRITO FEDERAL. COMPETÊNCIA DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE PARA O CASO. PRIORIDADE ABSOLUTA PRECONIZADA PELA CONSTITUIÇÃO. PROVAS CONVINCENTES. INCLUSÃO DE DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA PARA O CUMPRIMENTO DA CONSTITUIÇÃO E DA LEI. INGERÊNCIA INDEVIDA DO PODER JUDICIÁRIO NA COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO. PROVIMENTO PARCIAL À APELAÇÃO.
A justiça da infância e da juventude é competente para conhecer a ação proposta, consoante dispõem os artigos 148, 208 e 209 da lei número 8.069 de 13.07.90, ainda que réu o Distrito Federal.
Demonstrada que restou a precariedade dos estabelecimentos existentes cumpre ao Distrito Federal dar cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal, fazendo constar do orçamento de 1994 dotação para a construção de casas destinadas ao internamento de menores infratores, bem assim a estabelecimentos que recolham os mesmos em medida de semiliberdade, uma vez que a própria carta magna determina seja dada prioridade absoluta à matéria.
Não pode o pode judiciário determinar ao poder executivo a forma de administrar estes estabelecimentos, indicando-lhe os cargos que devem constar de seus quadros funcionais.
Provimento parcial ao recurso. (TJDFT. APE 62/92, Relator Desembargador LUIZ CLAUDIO ABREU, Conselho da Magistratura, julg. 16 abr. 1993, DJU 26 mai. 1993, p. 20017)
AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ECA – DETERMINAÇÃO AO PODER EXECUTIVO DE DESTINAR VERBA ORÇAMENTÁRIA – SERVIÇO PARA TRATAMENTO DE ADOLESCENTES INFRATORES – ADMISSIBILIDADE.
Cabe ao poder judiciário o controle da legalidade e constitucionalidade dos atos administrativos, não se admitindo que possa invadir o espaço reservado a discricionariedade da administração, decidindo acerca da conveniência e oportunidade da destinação de verbas, ressalvados os casos em que o legislador, através de disposição legal, já exerceu o poder discricionário, tomando a decisão política de estabelecer prioridades na destinação de verbas.
Em se tratando do atendimento ao menor, submeteu o legislador a decisão acerca da convivência e oportunidade a regra da prioridade absoluta insculpida no artigo 4º, do ECA e no artigo 227 da Constituição Federal. Embargos infringentes não acolhidos. (TJRS. EI 598164929-RS, 4º G.C.Cív. Rel. Desembargador ALZIR FELIPE SCHMITZ. Julg. 11 dez. 1998)
AÇÃO CÍVEL PÚBLICA – ECA – Obrigação de o estado-membro criar, instalar e manter programas destinados ao cumprimento de medidas sócio-educativas de internação e semiliberdade destinados a adolescentes infratores. Inclusão necessária no orçamento. Tem o estado o dever de adotar as providências necessárias a implantação. A discricionariedade, bem como o juízo de conveniência e oportunidade submeterem-se a regra da prioridade absoluta insculpida no art. 4º do eca e no art. 277 da CFB. Recurso desprovido, por maioria. (TJRS. AC 597097906-RS, 7ª C. Cív. Rel. Desembargador SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELOS CHAVES. julg. 22 abr. 1998)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. PROVA TESTEMUNHAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. CONSELHO TUTELAR. CRIAÇÃO DE PROGRAMAS DE ASSISTÊNCIA À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE.
1 - Não há de se falar em cerceamento de defesa se não há necessidade de dilação probatória, mormente quando trata-se de matéria exclusivamente de direito.
2 - O Município não deve se eximir do cumprimento do dever que lhe impõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao argumento de ausência de previsão orçamentária.
3 - É indiscutível a responsabilidade do Município quanto a criação e instalação dos programas de assistência a criança e ao adolescente, art. 101 e 102 da Lei 8.069/90, cabe ao mesmo implementar e manter uma política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, bem como os programas socioeducativo, art. 112, III do ECA. Apelo conhecido e improvido. (TJGO. Apelação Cível 87933-0/188 (200500828703), Acreúna, 2ª Câmara Cível, Rel. Desembargador GILBERTO MARQUES FILHO. Julg. 22 nov. 2005, unânime, DJ 19 dez. 2005)
51. No vertente caso, cristalino é o entendimento segundo o qual cabe ao Distrito Federal ultimar todas as ações para garantir o funcionamento dos Conselhos Tutelares em cada uma das Regiões Administrativas. Os dispositivos constitucionais mencionados anteriormente (art. 227, § 7º e art. 204), em síntese, fixam a responsabilidade do Distrito Federal em coordenar e executar programas sociais, bem como garantir a efetiva participação popular na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
52. Tanto a criação do Conselho dos Direitos quanto a dos Conselhos Tutelares são questões afetas ao Distrito Federal que, observando as normas gerais previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, deve editar lei no âmbito de sua competência (Câmara Legislativa do Distrito Federal) e executar as medidas necessárias para dar concretude às normas (Poder Executivo). Constitui dever expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 134. Lei Municipal disporá sobre local, dia e horário de funcionamento do Conselho Tutelar, inclusive quanto a eventual remuneração de seus membros.
Parágrafo único. Constará da Lei Orçamentária Municipal previsão dos recursos necessários ao funcionamento do Conselho Tutelar.
53. Observe-se que na Lei de Orçamento Anual devem, obrigatoriamente, constar todos os recursos indispensáveis ao normal funcionamento dos Conselhos Tutelares. Assim, tem o Executivo a oportunidade para, a qualquer tempo, abrir créditos suplementares para honrar o compromisso de manter os Conselhos Tutelares em condições ótimas de trabalho. A implantação e a estruturação dos Conselhos constituem responsabilidade do Distrito Federal e, como tal, uma prioridade no plano de investimentos. Se a legislação não é cumprida, cabe ao Judiciário garantir os direitos mediante todos os meios legais disponíveis.
E — Do dano moral coletivo
54. Na Constituição Federal restou garantido o direito à indenização por dano moral e material (art. 5, incs. V e X), admitindo-se hoje sua cumulação, o que consolida o princípio da indenização integral. A coletividade, por sua vez, apesar de ente despersonalizado, possui valores morais e um patrimônio ideal que merece proteção.
55. Admissível, portanto, a existência de dano ao sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente de natureza moral coletiva passível de indenização. É que, constatado um dano protetivo puro em razão da ausência de serviço que a Constituição Federal determina ao Estado que seja assegurado com prioridade absoluta, deve-se perceber que esse dano não consiste apenas e tão-somente na lesão direta ao direito da criança ou adolescente, em concreto, afetando igualmente outros valores precípuos da coletividade a ele ligados, tais como a qualidade de vida, a saúde, os valores culturais, históricos. O próprio interesse difuso da sociedade está sendo lesado, com o que se reconhece uma dimensão imaterial também ao dano protetivo puro (STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade Civil Ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 165 – paráfrase). Como preleciona CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO (Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro, in Revista de Direito do Consumidor, v.12, out.-dez. 1994, pp. 44 a 62),
[...]
O DANO MORAL COLETIVO É A INJUSTA LESÃO DA ESFERA MORAL DE UMA DADA COMUNIDADE, OU SEJA, É A VIOLAÇÃO ANTIJURÍDICA DE UM DETERMINADO CÍRCULO DE VALORES COLETIVOS. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial.
56. A possibilidade jurídica do pedido de indenização por dano moral coletivo decorre de expresso dispositivo legal: na Lei da Ação Civil Pública – Lei Federal 7.347 de 24 de julho de 1985 –, dispo-se: «Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, AS AÇÕES DE RESPONSABILIDADE POR DANOS MORAIS e patrimoniais causados [...] A QUALQUER outro INTERESSE DIFUSO OU COLETIVO». Há, no caso, o dever de indenizar porque a conduta ilícita praticada pela omissão do Distrito Federal ofende milhares de pessoas que aqui residem, valores fundamentais compartilhados por todos os brasileiros. Como observa CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO (Reparação civil por danos morais. São Paulo: RT, 1993, p. 220-222),
O VALOR DEVIDO a título de indenização pelos danos morais coletivos [...] deve traduzir-se em MONTANTE QUE REPRESENTE ADVERTÊNCIA AO LESANTE E À SOCIEDADE DE QUE NÃO SE ACEITA O COMPORTAMENTO ASSUMIDO, OU O EVENTO LESIVO ADVINDO. Consubstancia-se, portanto, em IMPORTÂNCIA COMPATÍVEL COM O VULTO DOS INTERESSES EM CONFLITO, REFLETINDO-SE DE MODO EXPRESSIVO, NO PATRIMÔNIO DO LESANTE, A FIM DE QUE SINTA, EFETIVAMENTE, A RESPOSTA DA ORDEM JURÍDICA AOS EFEITOS DO RESULTADO LESIVO PRODUZIDO. DEVE, POIS, SER QUANTIA ECONOMICAMENTE SIGNIFICATIVA, EM RAZÃO DAS POTENCIALIDADES DO PATRIMÔNIO DO LESANTE. Coaduna-se essa postura, ademais, com a própria índole da teoria em debate, possibilitando que se realize com maior ênfase, a sua função inibidora de comportamentos. Com efeito, o peso do ônus financeiro é, em um mundo em que cintilam interesses econômicos, a resposta pecuniária mais adequada a lesionamentos de ordem moral.
F — Da necessidade da antecipação da tutela jurisdicional
57. Demonstrou-se a violação da Constituição Federal, da Lei Orgânica do Distrito Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da regulamentação do Conanda, no que concerne à existência de Conselhos Tutelares em número suficiente para atendimento da população, estando a exigir, em caráter urgente, que se adotem medidas capazes de sanar tal violação, colocando à disposição da população infanto-juvenil os equipamentos necessários.
58. Flagrante a possibilidade de irreparabilidade do dano. Com efeito, a falta de instalação dos Conselhos Tutelares em cada uma das Regiões Administrativas viola, de modo imediato, os direitos e interesses das crianças e adolescentes da Capital Federal.
59. O direito não pode demorar a chegar no socorro e na proteção da comunidade local, que aguarda medidas compatíveis com o tratamento imediato e eficaz que merecem e as necessidades do órgão da sociedade encarregado de defendê-la. Não é só. Na Lei 7.347, de 24 de julho de 1985 – Lei da Ação Civil Pública –, estatui-se:
Art. 11. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente e compatível, independentemente de requerimento do autor.
Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita à agravo.
60. Tal norma, destinada a fornecer instrumento processual para a tutela jurisdicional de interesses difusos e coletivos, revela a atenção do legislador para com um dos problemas mais relevantes na matéria: o da eficácia da tutela. Os provimentos de urgência, que são instrumentos excepcionais de tutela preventiva e provisória, nas lides interindividuais, devem ser utilizados como provimentos antecipatórios, e substitutivos da decisão final em ações como a presente.
61. Na esfera do Direito da Criança e do Adolescente, a preocupação da lei é ainda mais marcante, conforme se observa na leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente, textualmente:
Art. 213. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citando o réu.
§ 2° O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.
62. De considerar-se que em 2009 será realizado novo processo de escolha para os Conselheiros Tutelares do Distrito Federal. O Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do Distrito Federal já está elaborando os atos necessários à realização do pleito, já tendo sido elaborado o cronograma das atividades e minuta de edital de convocação, nos termos da minuta anexada. Há necessidade urgente, portanto, da definição da quantidade de Conselheiros Tutelares que serão escolhidos, assim como da área de atuação de cada Conselho Tutelar.
63. Dessa forma, evidente a relevância do fundamento da demanda. Há que se ter em mente os sérios gravames que possam ocorrer à criança, pela demora do Distrito Federal em providenciar a adequação do número de Conselhos Tutelares, não sendo possível o aguardo de sentença final para o cumprimento da obrigação resultante de Lei, sob pena de irreparabilidade do prejuízo dessa forma causado.
64. Como se vê, é relevante o fundamento da demanda e há justificado receio de ineficácia do provimento final. Do mesmo modo, existe prova inequívoca capaz de levar o julgador a se convencer da verossimilhança das alegações e também há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (CPC, art. 273 e inc. I), uma vez que a perda da oportunidade de escolha dos novos Conselheiros Tutelares levaria a despesas e dispêndio de esforços que poderiam ser reduzidos se fosse feito concomitantemente com a escolha para os Conselhos Tutelares já existentes.
65. Cabe salientar, além disso, que a relevância do fundamento repousa na Constituição Federal, na Lei Orgânica do Distrito Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente que adotaram expressamente a teoria da proteção integral, pois o legislador pátrio e o legislador distrital buscaram garantir a proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos da criança e do adolescente. Também as Resoluções do Conanda a respeito do tema são incisivas, especialmente a Resolução 75 de 2001.
66. Relembre-se, também que não há indevida ingerência do Judiciário no Poder Executivo quando se determina que este cumpra suas obrigações. Neste sentido:
ESTATUTO DE CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – Agravo de instrumento contra decisão que concedeu liminar em ação civil pública garantindo a menores o direito a vaga em creche municipal – Concessão de liminar que, observados os requisitos legais, não configura indevida ingerência do Judiciário em poder discricionário do Executivo, mas caracterizaria o zelo próprio deste Poder no exercício de sua missão constitucional de fazer cumprir e respeitar as normas em vigor – Inteligência dos artigos 208, IV e 211, § 2º da Constituição Federal e 54, IV, 208, caput e inciso III, 213, parágrafo único do Estatuto da Criança e do Adolescente – omissis – Recurso de agravo prejudicado. (TJSP. AI 63.083-0-Santo André. C. Esp. Rel. Desembargador ÁLVARO LAZZARINI, julg. 4 nov. 1999)
67. E em recente decisão prolatada pelo Ministro GILMAR MENDES, Presidente do Supremo Tribunal Federal, restou assentado, textualmente:
[...]
Nesse sentido, o argumento central apontado pelo Estado do Tocantins reside na violação ao princípio da separação de poderes (art. 2º, CF/88), formulado em sentido forte, que veda intromissão do Poder Judiciário no âmbito de discricionariedade do Poder Executivo estadual.
Contudo, nos dias atuais, tal princípio, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz da realidade constitucional brasileira, num círculo em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam.
Nesse sentido, entendo inexistente a ocorrência de grave lesão à ordem pública, por violação ao art. 2º da Constituição. A alegação de violação à separação dos Poderes não justifica a inércia do Poder Executivo estadual do Tocantins, em cumprir seu dever constitucional de garantia dos direitos da criança e do adolescente, com a absoluta prioridade reclamada no texto constitucional (art. 227).
[...] (STF. Ministro GILMAR MENDES, Presidente. Despacho na Suspensão de Liminar 235, julg. 8 jul. 2008, DJE 143, 1º ago. 2008)
68. Diante da tramitação do feito, por conseguinte, imperiosa se mostra a necessidade de se antecipar a tutela pretendida, obrigando o requerido a adimplir a pretensão e fixando-lhe multa diária em caso de descumprimento do comando judicial.
69. Por isso, o Ministério Público requer a antecipação da tutela jurisdicional, sem justificação prévia, para determinar ao Distrito Federal, na pessoa do Governador, do representante legal do Distrito Federal e dos Secretários de Estado de Planejamento e Gestão e de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, o cumprimento dos imperativos constitucionais e legais constantes da Constituição Federal (art. 227), da Lei Orgânica do Distrito Federal (arts. 267 e 268), do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Resolução 75 de 2000 do Conanda e do artigo 16 da Lei distrital 234 de 1992, consistente em implantarem os Conselhos Tutelares decorrentes do mencionado dispositivo, devendo o processo de escolha cuja preparação já iniciou levar em conta a decisão antecipatória da tutela jurisdicional.
70. Requer-se, ainda, a fixação de multa diária, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), a ser exigida solidariamente da pessoa física do Governador, dos Secretários de Estado de Planejamento e Gestão e de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, no caso de descumprimento da ordem antecipatória da tutela jurisdicional, consistente na falta de instalação dos Conselhos Tutelares (um em cada Região Administrativa e dois nas Regiões Administrativas de Brasília, Ceilândia e Taguatinga), sob qualquer alegação, revertendo, oportunamente, ao Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, na forma da Lei 8.069 de 1990 (art. 214).
71. A propósito, é certo que a multa é o instrumento que mais tem sido utilizado para se punir o descumprimento de decisão judicial, podendo ser tanto aplicada a pessoas jurídicas como a pessoas físicas. Mas, tratando-se de aplicação da multa à pessoa jurídica de direito público, o que tem se observado é que essa medida quase não surte efeito, porquanto a multa geralmente incide sobre o patrimônio do Estado e não do agente administrativo que acaba se omitindo no cumprimento da decisão mandamental, causando embaraço ao próprio Poder Judiciário que vê suas decisões serem ignoradas, para a perplexidade do jurisdicionado, gerando uma sensação de impunidade e desrespeito a um Poder Constituído.
72. Por isso, com razão HUGO DE BRITO MACHADO (Descumprimento de decisão judicial e responsabilidade pessoal do agente público in Revista Dialética de Direito Tributário n. 86, pp. 50-59. São Paulo: Oliveira Rocha, 2002), ao defender que, quando seja parte no processo a Fazenda Pública, a multa prevista no Código de Processo Civil (art. 14, par. ún.), deve ser aplicada àquele que a corporifica, ao agente público, ao dirigente ou representante da pessoa jurídica ao qual caiba a conduta a ser adotada em cumprimento da decisão judicial. Preleciona o mestre:
Não é razoável sustentar-se, que, sendo o Estado responsável pela prestação jurisdicional, cuja presteza lhe cabe preservar, tutelando e defendendo o interesse público primário, possa ele próprio cometer um ato atentatório a dignidade da jurisdição. Quem comete esse ato na verdade é o servidor público que não está realmente preparado para o desempenho de suas atribuições em um Estado de Direito. A esse, portanto, cabe suportar a sanção correspondente.
73. Esta, portanto, a solução mais adequada, uma vez que infelizmente é comum o descumprimento das decisões judiciais, quando não fixada multa ao Governador e aos Secretários de Estado que possuem poder de decisão para aplicação dos recursos públicos necessários ao cumprimento da decisão judicial, como sói se verificar em diversos casos em tramitação na própria Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal.
74. Ressalte-se que, com a implantação dos Conselhos Tutelares por força da antecipação da tutela jurisdicional, o Distrito Federal deverá passar a contar com um Conselho Tutelar em cada Região Administrativa do Distrito Federal, sendo que as Regiões Administrativas de Brasília, Ceilândia, Planaltina e Taguatinga contarão com dois, passando o número total a ser de 33 Conselhos Tutelares, integrados por 165 Conselheiros Tutelares. Em razão disso, também se requer a notificação do Presidente do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do Distrito Federal para que conduza o processo de escolha no sentido do cumprimento da r. decisão, vale dizer, o processo de escolha deverá ser conduzido de modo a selecionar 165 Conselheiros Tutelares titulares.
IV — Dos pedidos
75. Por tais motivos, atribuindo à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), requer o Ministério Público:
I. a concessão dos benefícios da justiça gratuita, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 141, § 2º) e da Lei 4.347 de 1985 (art. 18);
II. a antecipação da tutela judisdicional, sem justificação prévia, para o fim de, reconhecendo, incidenter tantum e com efeitos ex nunc, a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei distrital 2.640 de 2000, frente aos artigos 10, 267 e 268 da Lei Orgânica do Distrito Federal, e ao artigo 227, § 7º e 204 da Constituição da República, por ofensa aos princípios democrático e da proibição do retrocesso em tema de direitos fundamentais, considerar aplicável o artigo 16 da Lei 234 de 1992, assim como para determinar:
a. ao Distrito Federal, a obrigação de fazer de implantar mais 23 Conselhos Tutelares, completando a razão de um para cada Região Administrativa, assim como aquelas que venham a ser criadas, e contemplando as Regiões Administrativas de Brasília, Ceilândia, Planaltina e Taguatinga com dois Conselhos Tutelares, devendo, para tanto, adotar as seguintes medidas:
a.1. disponibilizar espaço físico adequado para instalação de cada um dos novos Conselhos Tutelares, de forma que estejam plenamente equipados e prontos para ocupação até 5 de outubro de 2009, e no prazo máximo de 90 dias, informar a esse Juízo quais serão esses espaços físicos, assim como as ações desenvolvidas para o cumprimento da decisão;
a.2. encaminhar à Câmara Legislativa do Distrito Federal antes do início da votação do projeto de lei orçamentária para 2009, proposta orçamentária que contemple a previsão dos recursos necessários ao funcionamento dos novos Conselhos Tutelares;
a.3. nomear e dar posse aos Conselheiros Tutelares eleitos para os novos Conselhos Tutelares após o processo de escolha e na mesma data da nomeação e posse dos Conselheiros Tutelares escolhidos para os Conselhos Tutelares já existentes, no cargo previsto no artigo 44 da Lei 3.824, de 21 de fevereiro de 2006;
a.4. efetivar o funcionamento do plantão previsto no artigo 16 da Lei 234 de 1992, a partir da nomeação e posse dos Conselheiros Tutelares eleitos para o triênio 2009-2012;
a.5. disponibilizar espaço físico adequado para instalação dos Conselhos Tutelares criados com fundamento na criação de novas Regiões Administrativas, de forma que estejam plenamente equipados e prontos para ocupação na mesma data de instalação da respectiva Administração Regional;
b. a fixação de multa diária, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), a ser exigida solidariamente da pessoa física do Governador, dos Secretários de Estado de Planejamento e Gestão e de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, no caso de descumprimento de cada uma das determinações constantes da ordem antecipatória da tutela jurisdicional requeridas no subitem «a», sob qualquer alegação, revertendo, oportunamente, ao Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, na forma da Lei 8.069 de 1990 (art. 214).
c. em razão da decisão antecipatória da tutela e para dar-lhe pleno efeito, determinar a notificação:
c.1. do Presidente do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do Distrito Federal que conduza o processo de escolha dos Conselheiros Tutelares para o triênio 2009-2012 de modo a selecionar 165 Conselheiros Tutelares titulares para atuarem nos 33 Conselhos Tutelares do Distrito Federal, que serão instalados na razão de um para cada Região Administrativa e contemplando as Regiões Administrativas de Brasília, Ceilândia, Planaltina e Taguatinga com dois Conselhos Tutelares;
c.2. do Governador, do representante legal do Distrito Federal, do Secretário de Estado de Planejamento e Gestão e do Secretário de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, que, juntamente com cada um dos respectivos Administradores Regionais, providenciem a implantação de mais 23 Conselhos Tutelares, completando a razão de um para cada Região Administrativa, assim como aquelas que venham a ser criadas, e contemplando as Regiões Administrativas de Brasília, Ceilândia, Planaltina e Taguatinga com dois Conselhos Tutelares;
c.3. do Governador do Distrito Federal para que encaminhe à Câmara Legislativa do Distrito Federal antes do início da votação do projeto de lei orçamentária para 2009, proposta orçamentária que contemple a previsão dos recursos necessários ao funcionamento dos novos Conselhos Tutelares;
III. a citação do DISTRITO FEDERAL na pessoa do Procurador-Geral do Distrito Federal, nos termos da Lei Orgânica do Distrito Federal (arts. 110 e 111), com endereço no SAM, Bloco «I», Edifício-sede da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, CEP 70620-000, telefones 3325 3365 e 3325 3366, para, no prazo legal, querendo, apresentar resposta à ação, bem como para acompanhá-la até final sentença, sob pena de revelia;
IV. a produção de prova com a utilização de todos os meios admitidos em Direito, inclusive documental, com os documentos que instruem esta petição, e depoimento pessoal das autoridades e testemunhas adiante arroladas, em audiência a ser designada por Vossa Excelência;
V. ao final, a procedência do pedido, para o fim de confirmar a antecipação da tutela jurisdicional nos termos requeridos, reconhecendo, incidenter tantum e com efeitos ex nunc, a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei distrital 2.640 de 2000, frente aos artigos 10, 267 e 268 da Lei Orgânica do Distrito Federal, e ao artigo 227, § 7º e 204 da Constituição da República, por ofensa aos princípios democrático e da proibição do retrocesso em tema de direitos fundamentais, considerar aplicável o artigo 16 da Lei 234 de 1992, CONDENANDO o DISTRITO FEDERAL à obrigação de fazer de implementar e garantir o funcionamento adequado de mais 23 Conselhos Tutelares, completando a razão de um para cada Região Administrativa, o que deverá ser feito juntamente com cada um dos respectivos Administradores Regionais, assim como aquelas que venham a ser criadas, e contemplando as Regiões Administrativas de Brasília, Ceilândia, Planaltina e Taguatinga com dois Conselhos Tutelares, na forma prevista no artigo 16 da Lei 234 de 1992;
VI. a CONDENAÇÃO do DISTRITO FEDERAL, à obrigação de indenizar o dano moral protetivo de natureza coletiva decorrente da privação social da plena garantia aos direitos da criança e do adolescente por todo o período em que os Conselhos Tutelares ficaram aquém da necessidade, cujo valor será fixado em liquidação de sentença e destinado ao Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente do Distrito Federal;
VII. a fixação de multa diária, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), a ser exigida solidariamente da pessoa física do Governador, dos Secretários de Estado de Planejamento e Gestão e de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, no caso de descumprimento da tutela jurisdicional final, sob qualquer alegação, revertendo, oportunamente, ao Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, na forma da Lei 8.069 de 1990 (art. 214);
VIII. a determinação das medidas necessárias para a efetivação da tutela específica ou resultado prático equivalente, nos termos do artigo 461 e seu § 5º, do Código de Processo Civil;
IX. a condenação nos consectários sucumbenciais.
ROL DE TESTEMUNHAS
PENIEL PACHECO – Ex-Secretário de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania do Distrito Federal;
RICARDO PINHEIRO PENNA – Secretário de Estado de Planejamento e Gestão do Distrito Federal;
MAURÍCIO ALBERNAZ GOLEBIOWSKI – Coordenador de Apoio Técnico e Administrativo dos Conselhos Tutelares do Distrito Federal;
ANTONIO ROLDINO PEREIRA NETO – Presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares do Distrito Federal;
RAFAEL MADEIRA DA VEIGA – Conselheiro Tutelar de Brasília;
MARIA DO SOCORRO GOMES LEITÃO – Conselheira do CDCA-DF;
SÍLVIA MARIA DE MATTOS ARRUDA– Conselheira do CDCA-DF;
MARY FREITAS DE MORAIS – Assessora do CDCA-DF;
PERLA RIBEIRO – Coordenadora do CEDECA-DF;
BENEDITO RODRIGUES DOS SANTOS – Secretário-Executivo do Conanda.
Capital da República, segunda-feira, 17 de novembro de 2008.
Promotora de Justiça LESLIE MARQUES DE CARVALHO
Promotor de Justiça OTO DE QUADROS
Promotora de Justiça FABIANA DE ASSIS PINHEIRO
Promotora de Justiça LUISA DE MARILLAC
Tels. 3348 9000 – 3348 9080 – FAX 3348 9100 – 3348 9084 – Internet: http://www.mpdft.gov.br/infancia – E-mail: pdij@mpdft.gov.br